Meus Queridos Amigos, e demais leitores,
Antes de mais nada, vou puxar pelos galões.
Não que sirvam de muito, porque não sou imunologista, nem bioquímico, nem epidemiologista… sou médico. E como médico, principalmente médico de família, tenho um pouco de imunologista, um pouquinho de bioquímico, um pouco mais de epidemiologista.
Mas o que tenho mais é de médico e cientista: tento tratar e orientar o melhor possível os meus utentes (porque nem todos são doentes) considerando os meus conhecimentos clínicos e a evidência científica existente sobre variados assuntos de múltiplas áreas. Mas se não sei o suficiente sobre algo, pesquiso ou referencio, tenho a humildade (diria antes que é uma questão de competências) de saber que não sei muito e precisar que quem sabe e estudou me diga o que deve ser feito.
Confiem em mim, no entanto, quando digo que de vacinação e crianças não sei assim tão pouco. Tenho de saber, como médico, já não digo de família (que inclui ter um pouco de pediatra), quais os mecanismos imunológicos e bioquímicos que justificam a vacinação. E tenho de compreender (não apenas saber) porque é que um dos mais importantes feitos, senão o maior feito, da medicina e um dos que teve maior impacto na saúde pública, na redução da mortalidade infantil e na qualidade de vida de que beneficiamos foi a vacinação.
Mas precisamente por ser médico nutro de um preconceito visceral (admito) contra as pessoas que acham que sabem mais que os médicos e cientistas que dedicaram as suas vidas ao longo de dezenas de anos no desenvolvimento de novas vacinas, com sucessos e erros pelo caminho, para tentar melhorar as condições de vida das populações e prevenir doenças potencialmente fatais ou com complicações graves e limitativas. Diz-se que de médico e de louco todos temos um pouco, mas essa gente é muito mais louca que médica.
Talvez seja porque, pelo que estudei e pesquisei, e vi, compreendo quanto é ÓBVIO que a vacinação é importante. Pode não ser óbvio para todos, mas se querem argumentar, procurem saber mais antes de arriscar a vida de uma criança.
Ou perguntem e aceitem os conhecimentos e competências de quem sabe. Como eu faço!
Argumentos utilizados para não vacinar terão resposta(s) à altura:
Argumento 1: As vacinas são uma invenção das farmacêuticas para obrigar as pessoas a gastar dinheiro e não têm qualquer efeito, ou este não é significativo na prevenção de problemas graves
Resposta 1.1: Era uma vez um tempo em que não havia vacinas, e todos os anos morriam milhares de pessoas vítimas da varíola na Europa (senão mais) e muitas mais no resto do mundo. Um certo cientista, muito observador, verificou que as pessoas que tratavam de vacas infectadas por uma variante bovina da varíola (cowpox) sofriam uma doença muito leve e sem sequelas, e depois não apanhavam varíola (chickenpox) nem em contacto próximo com pessoas infectadas. Depois de vários testes eticamente reprováveis hoje em dia, mas que na altura eram a única coisa que se podia fazer, verificou que todas as pessoas inoculadas com um pouco do pus das vacas infectadas ficavam imunes à varíola! Resultado: nasceu a vacina da varíola que foi tão eficaz que levou à erradicação total do vírus! Portanto, as vacinas não servem para nada…
Resposta 1.2: Só quem nunca estudou o assunto é que acha que as farmacêuticas ganham alguma coisa com vacinas… É bem conhecido que a vacinação é das coisas menos lucrativas que as farmacêuticas vendem, e algumas até dão prejuízo. Boa parte do lucro que algumas obtêm, que é escasso, vem de operações financeiras, apoios externos e fundos das sociedades médicas e estados. Não quer dizer que algumas vacinas não estejam estrategicamente dirigidas para ser lucrativas, mas geralmente são as que têm fraca evidência de utilização ou dirigidas a doenças pouco problemáticas (e por isso ausentes do PNV da maioria dos países).
Argumento 2: É muito pequenino, faz mal vacinas tão cedo e para já não vai contactar com vírus…
Resposta 2.1: …
Resposta 2.2: As vacinas devem ser dadas nos momentos de vacinação para maior protecção da criança, uma vez que determinadas doenças podem causar infecção na criança muito cedo, e outras precisam de várias doses tomadas em intervalos de segurança para ter eficácia preventiva.
A maioria das vacinas só têm indicação para ser dadas mais tardiamente ou não ser dadas de todo se houver contraindicações muito específicas, normalmente relacionadas com coexistência de doenças graves. Outras podem mudar a sua data ideal de inoculação no PNV consoante os resultados obtidos com a sua aplicação na população. O seguinte exemplo pode ser também resposta ao argumento 1:
- A vacina contra o meningococo C, que causava meningite em crianças de todas as idades, levou a uma redução brutal do número de meningites causadas pelo meningococo C, de tal ordem que, à medida que a vacina se generalizou pela população, os números de infectados era tão baixo que a probabilidade de uma criança pequena não imunizada ser infectada era mínima – é o efeito de imunidade de grupo. Isto levou a que a vacina deixasse de ser em múltiplas doses desde os 3 meses para ser feita aos 12 meses em dose única, o que mantém a imunidade de grupo e individual, uma vez que a vacina foi tão eficaz.
- Mas se de repente muitas pessoas se lembrassem de não vacinar, a probabilidade era de se perder essa imunidade de grupo e ter de se vacinar as crianças pequenas. Foi o que aconteceu com a questão da vacina do sarampo nos EUA (dada aos 12 meses).
Resposta 2.3: ESTAMOS SEMPRE EM CONTACTO COM VIRUS, BASTA RESPIRAR PARA CIMA DA CRIANÇA PARA LHE PASSAR UMA MIRIADE DELES TODOS DIFERENTES!!
Argumento 3: Compreendo tudo, mas se os outros são vacinados o meu não precisa, por causa da imunidade de grupo. Depois se precisar das vacinas para ir para a escola faz todas nessa altura.
Resposta 3.1: ver resposta 2.1
Resposta 3.2: A imunidade de grupo funciona para a maioria das doenças mas não todas. Há doenças que infectam as crianças directamente, mesmo sendo a maioria da população vacinada (ex: tétano), ou aumentam a probabilidade de mais tarde ter a doença, porque o “bicho” é ubíquo (ex: tuberculose – vacina BCG); além disso, se houver meia dúzia de mães a pensar assim numa creche, acabou-se a imunidade de grupo nessa microcomunidade em contacto próximo – bastaram 2 miúdos não vacinados mais velhos e uns bebés que ainda não eram vacinados pela idade para quase uma dezena de casos de sarampo nos EUA (verificar números, estou a ditar de cabeça) – ver ainda resposta 2.2
Argumento 4: As vacinas causam doenças como o autismo, asma… os efeitos secundários são graves.
Resposta 4.1:
a) Habitualmente um argumento usado por mentes (des)informadas com mania que são mais espertos que os outros, e que conhecem "muito bem" estudos científicos. 100% das vezes são pessoas que não compreendem como funcionam estudos e só lêm o título do artigo e a linha que diz "Conclusões", e generalizam "resultados" para uma vacina a todas as vacinas - do tipo: morrem mais pessoas nos acidentes de mota, por isso não vou sequer andar de carro, metro ou autocarro, muito menos bicicleta! Então avião ou comboio nem se fala! Qualquer dia nem saio de casa...
b) Os estudos que mostram relação entre o autismo e as vacinas ou são fraudes já comprovadas (como a da vacina do sarampo e rubéola - o homem queria vender uma vacina alternativa que ele fez!) ou são estudos de pequena dimensão (não representativos da população) e não prospectivos (ver explanação do conceito no fim: #), e/ou a associação ou é causada por viéses, como o de selecção dos grupos ou casos (viés é como se fosse um erro na execução que pode interferir com o resultado do estudo), ou equivalente à população em geral (logo não se pode dizer que haja causalidade, já que ocorre com a mesma frequência na população), ou com amostra muito escassa para ser extrapolável.
Os estudos que mostram associação com doenças graves estão carregados de viéses e/ou conflitos de interesse. Os poucos estudos que mostram algum problema importante com vacinas, que estejam bem feitos e sem viéses significativos referem-se quase sempre a vacinas ainda não aplicadas em larga escala (em fase de estudo ou ainda não incluídas em PNVs), e tal resulta ou numa alteração da aplicabilidade da vacina (relativa à idade de inoculação ou às indicações para tal) ou à remoção dessas vacinas no mercado, conforme a natureza e gravidade do problema.
As vacinas incluídas ao momento na maioria dos PNVs europeus e americanos (não conheço os outros, que têm vacinas diferentes) estão bem estudadas e os efeitos adversos conhecidos resultam num índice risco-benefício baixíssimo (ou seja benefício muito superior ao risco).
Veja-se o caso da vacina contra o HPV, que teve meia dúzia de casos de “reacções” graves, mas que não se conseguiu atribuir causalidade, e que não se repetiu com a mesma frequência à medida que a vacina foi sendo distribuída mundialmente. O risco de fazer a vacina é MUITO inferior ao de ter cancro no colo do útero ao não ter feito a vacina. Considere-se que apesar de o risco de cancro reduzir muito, não é 100% eficaz, mas a redução do risco é brutal, fazendo com que a vacina aliada à colpocitologia habitual pode prevenir quase totalidade dos cancros do colo do útero causados por HPV (o que também responde ao Argumento 1).
Muito mais haveria a dizer, meus queridos amigos, sobre a idiotice de certas pessoas que preferem arriscar uma doença grave numa criança do que arriscar um efeito adverso que é muito mais raro ou até inexistente (seja qual for o efeito adverso que estejam a falar).
Dizem-me: temos o direito de escolher, e eu digo, ninguém vos tira o direito de fazer escolhas idiotas, mas por favor não as façam pelos vossos filhos.
Podem baptizá-los na cientologia, inscrevê-lo como sócio do Benfica assim que nasce, ensinar-lhe que o evolucionismo é uma treta e viva o criacionismo, mas por favor, quanto à saúde, sejam conscientes, não arrisquem, vacinem a criança!
(a não ser que queiram fazer controlo populacional, nesse caso levem essas ideias de não vacinar ao governo chinês que eles agradecem)
Disse!
--------------------
# - Para quem não sabe os estudos prospectivos são estudos realizados ao longo do tempo em 2 grupos de razoável e equivalente dimensão, em que um faz uma determinada terapêutica e outro não, e vai-se ver qual a ocorrência de um problema em ambos os grupos para calcular a associação e apurar ou não causalidade. Os estudos prospectivos, ou de coorte, são os únicos que podem apurar causalidade. Devem ser aleatorizados (ambos os grupos foram formados de forma aleatória para serem homogéneos, sem diferenças de características que possam influenciar o resultado) e de preferência ensaios duplo cegos, ou com dupla ocultação (ou seja, ninguém, nem médico que recolhe os resultados nem participante do estudo, sabem inicialmente quem está a fazer o medicamento, só no fim, o que implica uso de placebo, no caso das vacinas seria uma vacina de soro, provavelmente). Só um estudo com estas características é usado como "prova" de causalidade, e é mais forte quanto mais estudos semelhantes comprovarem o mesmo.